segunda-feira, 14 de novembro de 2016

ACONTECIMENTOS - A CHACINA DA CANDELÁRIA (RJ)

Os degraus que conduzem os fiéis à sua entrada e as calçadas que circundam o templo encravado no centro financeiro do Rio de Janeiro serviam de leito para 50 menores de rua. Oito deles foram mortos a tiros por policiais militares. O episódio brutal deixou indignada a opinião pública e denegriu ainda mais a imagem do País. 

"O massacre deve doer em nossa face como uma bofetada humilhante", disse o então presidente Itamar Franco (19302011). A cena de barbárie tornou a colocar em desagradável evidência chagas abertas da sociedade brasileira, como o problema do menor de rua, o crescente envolvimento de policiais em atividades criminosas e o aumento explosivo da violência urbana. 

Nas grandes cidades atingiu níveis assombrosos. As estatísticas policiais mostram que a taxa de homicídios triplicou na cidade do Rio nos anos 80, período em que a população cresceu apenas 1,13%. O aumento ocorre especialmente nos municípios da periferia pobre. As novas imagens da cidade não são mais associadas à utopia liberal da liberdade e da segurança, perdendo as velhas virtudes cívicas. As cidades, hoje, têm suas imagens tomadas pela deterioração da qualidade de vida urbana.

Alguns anos antes, em agosto de 1987, a morte de Fernando da Silva Ramos (1967), 19 anos, o Pixote, tornara-se cause celébre relacionada ao tema. Escolhido para protagonizar filme de mesmo nome juntamente com a atriz Marília Pêra (1943/2015) [Escrevi sobre este filme aqui ⇒ http://circuitogeral2015.blogspot.com.br/2016/07/filmes-que-eu-vi-especial-pixote-lei-do.html], o menino pobre da periferia de São Paulo transpôs para a vida real as desventuras vividas no mundo do crime da ficção. 

Foi baleado em tiroteio com policiais militares oito anos depois de se ofuscar pelo brilho da fama. Seu corpo foi cravejado por oito tiros. A versão da polícia dava conta de que ele havia resistido a um cerco após ter participado de um assalto. Testemunhas disseram que Fernando estava desarmado. Dos seis acusados pela chacina da Candelária, três foram absolvidos e outros três condenados. Nada aconteceu com os homens acusados pelo assassinato de Fernando.

A barbárie



A madrugada do dia 23 de julho, há 23 anos, aconteceu o crime que ficou conhecido como Chacina da Candelária, um massacre de crianças e adolescentes moradores de rua por um grupo de extermínio, formado por policiais militares, que vitimou oito jovens, seis deles menores de 18 anos. Na ocasião, mais de 40 crianças e adolescentes dormiam na praça em frente à Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, quando cinco homens desceram de dois carros, um táxi e um Chevett branco, e fizeram vários disparos na direção do grupo. 

Dos policiais envolvidos, apenas três foram condenados. O homicídio qualificado praticado pelos ex-policiais só foi considerado hediondo no ano seguinte. Durante a investigação policial, comprovou-se que se tratava de uma milícia que atuava a serviço de grupos e indivíduos para exterminar moradores de rua.

O sangrento mapa das chacinas no Brasil


No Rio de Janeiro, desde então ocorrerão chacinas em Vigário Geral (1993), no morro do Borel (2003), na Via Show (2003), e na Baixada Fluminense (2005). Todas foram cometidas por policiais e as vítimas foram majoritariamente adolescentes negros e pobres. No caso de Vigário Geral, dos cinquenta policiais militares acusados de envolvimento no episódio, apenas dois estão presos. Nenhum dos parentes das vítimas recebeu a indenização completa do Estado.

Para citar casos mais recentes, aponta-se a investigação, realizada na cidade de Fortaleza, de 24 homicídios entre os anos de 2000 e 2002 (dados da Procuradoria Federal de Defesa do Cidadão), incluindo-se de adolescentes, promovidos por um grupo de policiais militares e ex-policiais, chefiados por um major da PM. Uma situação de extermínio de jovens e adolescentes praticados por agentes do Poder Público com o patrocínio de empresas privadas.

Entre 2009 a 2012, 6.483 pessoas foram assassinadas em Salvador – a maior parte das vítimas possuía entre 19 e 24 anos. Segundo reportagem da Agencia Pública, uma pesquisa realizada pelo Fórum Comunitário de Combate à Violência (FCCV) apontou que entre 1998 e 2004, das 6.308 pessoas assassinadas em Salvador, 5.852 eram negras ou pardas. Um índice de 92,7% frente aos 85% de afrodescendentes que à época formavam a população da capital da Bahia. 

A polícia não sabe quantificar o percentual praticado por grupos de extermínio, mas a frequência de crimes desse tipo já foi admitida pelas autoridades policiais do Estado: as vítimas, a maioria delas moradores de rua, "foram algemadas ou amarradas, e atingidas na cabeça por assassinos encapuzados, que chegaram ao local em carros com placas clonada e armados com munição de grosso calibre" (Veja mais clicando aqui).

Duas décadas de impunidade


23 anos após a Chacina da Candelária, uma breve análise desses casos atesta que a política de segurança pública das principais capitais brasileiras mudou de forma, mas não foi alterada substancialmente: continua se baseando na criminalização da pobreza e no extermínio da juventude pobre e negra. Conforme o assessor de direitos humanos da Anistia Internacional, em recente entrevista ao jornal Correio Brasiliense, a não ocorrência de grandes chacinas como a da Candelária, nos últimos anos, não representa um "avanço".
As operações policiais altamente questionáveis são frequentes, e matam um grande número de pessoas.

Embora extremamente invisibilizada pela grande mídia, essa pauta orienta de forma intensa o recente clima de "outono brasileiro", principalmente nas mobilizações organizadas pelos movimentos populares urbano nas periferias. Recentemente, uma proposta concreta de atuação dos policiais em ações nas comunidades foi apresentada pela organização Observatório de Favelas. A discussão ocorreu durante a audiência pública promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Rio de Janeiro (OAB-RJ), para discutir a segurança pública e a atuação policial nas manifestações, ocorrida no dia 19 de julho de 2013.

Reivindicações estruturantes como essa deslocam o debate para o campo da macropolítica e problematizam uma realidade conhecida e silenciada pelas grandes corporações formadoras da "opinião pública" – a do extermínio organizado, inclusive por agentes do Poder Público, da juventude pobre e negra. Relembrar a Chacina da Candelária e ressaltar os dados alarmantes da violência policial no país nos dias de hoje é resistir à violência cotidiana e seletiva do Estado e ressaltar a importância do conteúdo crítico dos direitos humanos, também enquanto discurso, para o enfrentamento dessa realidade.

Conclusão


Fonte da imagem: Grupo Tortura Nunca Mais – RJ

A prova de que nada mudou nesses 20 anos é a recente chacina ocorrida na zona leste de São Paulo, quando cinco jovens da periferia paulista, de idades entre 16 e 30 anos –quatro deles com passagens pela Fundação Casa (antiga FEBEM) –, sendo dois deles suspeitos de envolvimento na morte de um agente da GCM (Guarda Civil Municipal), chocou o Brasil pela crueldade. 

Segundo investigações, Jonathan Moreira Ferreira, de 18 anos; César Augusto Gomes Silva, de 19; Caique Henrique Machado Silva, 18; Robson Fernando Donato de Paula, 16, que era cadeirante, e Jones Ferreira Januário, 30 desapareceram quando se dirigiam a uma festa em Ribeirão Pires, no ABC Paulista. Os corpos deles foram encontrados em 6 de novembro, numa área rural em Mogi das Cruzes, interior paulista. Ainda segundo as investigações, o grupo teria sido atraído para uma emboscada e a principal suspeita é que eles tenham sido executados como vingança pelo envolvimento de dois deles, Jonathan e Caíque, no latrocínio – roubo seguido de morte – do guarda municipal Rodrigo Sabino, 30 anos, há três meses.

Os corpos dos quatros jovens mortos na chacina foram sepultados em uma cerimônia coletiva na tarde deste sábado (12), no Cemitério da Vila Alpina, na Zona Leste de São Paulo. Familiares e amigos fizeram orações e gritaram "Justiça". O secretário de Segurança Pública de SP, Mágino Alves, confirmou a identidade da quinta vítima, Jones, nesta sexta-feira (11). O corpo dele foi sepultado no Cemitério da Vila Formosa neste domingo (13). O guarda civil Rodrigo Gonçalves Oliveira, teve a prisão temporária decretada pela Justiça de Mogi das Cruzes. Segundo a polícia, ele confessou ter "armado uma cilada" para os rapazes. Mais dois guardas civis de Santo André, no ABC, são investigados por suspeita de participação no desaparecimento e na chacina dos jovens.

Enfim, como cantou o Renato Russo (em trecho da linda canção "Por Enquanto"): "Mudaram as estações, nada mudou, mas eu sei que alguma coisa aconteceu..."

[Fonte: IstoÉ; Anistia Internacional; G1]

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