sexta-feira, 9 de setembro de 2016

FILMES QUE EU VI 20: "CIDADE DE DEUS"

Um de meus seguidores aqui no blog me perguntou se eu não gostava do cinema nacional, pois na Série Especial Filmes Que Eu Vi eu sempre enfoco filmes estrangeiros. Eu respondi a ele que sim. Não tenha nenhum tipo de preconceito contra o cinema nacional e que, inclusive, já tinha visto alguns filmes bons. 

Realmente não sou do tipo que gosta de ficar falando mal dos produtos nacionais. Nós brasileiros quando queremos, somos bastante criativos e temos vários registros nos mais diversos segmentos artísticos que provam isso. Tais registros, inclusive são reconhecido fora daqui. Por isso, após esse bate-papo com o meu seguidor, decidi falar sobre um filme, uma obra-prima, um clássico do nosso cinema: "Cidade de Deus".

O filme e a estética de uma triste realidade


O filme "Cidade de Deus" (2002), adaptado do livro homônimo do escritor Paulo Lins e dirigido por Fernando Meirelles, pode ser considerado como um dos representantes mais sensíveis da estética pós-modernista amparada pela fusão de estilos e linguagens diferenciadas. Apesar de recorrer a padrões clássicos de narrativa, nos quais há o envolvimento característico e intenso do espectador com a trama, a obra também apresenta elementos próprios de um cinema de vanguarda, tais como a fragmentação temporal e a montagem criativa.

Além disso, "Cidade de Deus" ainda recorre ao uso de flashbacks, fusões, narrativas paralelas, tomadas com enquadramentos inusitados e subjetivos, entre outros elementos que reforçam suas bases contemporâneas de visualidade. 

Antes de partir para uma análise específica de alguns aspectos da obra de Meirelles, cabe a elaboração de um pequeno esboço sobre as duas principais tramas do filme: 
  • Em primeiro lugar, "Cidade de Deus" conta a trajetória de Dadinho (Douglas Silva), um pequeno e sanguinário bandido da favela que, após receber o nome de Zé Pequeno (Leandro Firmino da Hora) em um terreiro de candomblé, se envolve plenamente com o tráfico e a violência. 
  • Paralelamente à vida do primeiro personagem, o filme também mostra o percurso de Busca-Pé (Alexandre Rodrigues), um colega de infância de Dadinho que prefere seguir sua vida sem o envolvimento efetivo com o crime. 
Em termos estilísticos, "Cidade de Deus" já começa com cenas de impacto. O público acompanha, rapidamente, toda a trajetória de uma galinha que escapa da degola - uma sugestiva alusão -, estrutura que ganha ritmo por meio de cortes rápidos e do uso da câmera na mão. 

A sequência seguinte funciona como um ponto de partida para toda a história: através de um giro da câmera para um lado e outro feito a partir do personagem Busca-Pé, apresenta-se uma gangue de jovens e crianças com armas nas mãos em oposição a um grupo de policiais, imagem semelhante às clássicas cenas de duelo em filmes de western. Nesse momento, há um recuo da trama para os anos 60 a fim de explicar como surgiu aquele conjunto habitacional da zona oeste carioca (a verdadeira Cidade de Deus) e o desenvolvimento da criminalidade na região enquanto os personagens ainda eram crianças. 

Analisando a obra


Desta forma, como bem explica Luiz Zanin Oricchio em seu livro "Cinema de Novo: Um Balanço Crítico da Retomada" (editora Estação Liberdade, 2003, 255 páginas) "Cidade de Deus" realiza uma espécie de circularidade da narrativa, sendo que a mesma apenas é esclarecida quando retoma à sua condição inicial. 

Esse estilo de configuração temporal em círculo pode ser observado em vários outros momentos da fita como, por exemplo, para explicar a ocasião em que o marginal Zé Pequeno toma posse de uma boca de fumo inimiga, evocando toda a história do local. Segundo o autor, esse seria um formato próximo ao videoclipe, um produto audiovisual televisivo que, devido à rápida fusão de imagens, não deixa espaço para dispersões. 

Contudo, o diretor Fernando Meirelles em entrevista à Revista Bravo (setembro de 2002), coloca essa estrutura utilizada no longa-metragem como uma solução de linguagem encontrada para não quebrar, através de cortes súbitos, os estados de tensão dos espectadores. Para Meirelles, não se trata apenas de uma estética publicitária ou "videoclipesca" e sim de um recurso narrativo. 

Além disso, o filme ainda faz uso de frases com caracteres inseridos sobre a imagem (legendas) a fim de realçar o entendimento de contextos específicos e permite momentos de duplicação da tela, mostrando acontecimentos paralelos de maneira simultânea. O som complementa o visual e reforça a carga dramática do filme. Nesse contexto, um belo exemplo é a cena em que Cabeleira (Jonathan Haagensen) é morto pela polícia enquanto, ao fundo, ouve-se uma música de Cartola. 

Cidade de quem mesmo?


"Cidade de Deus" mostra a violência de dentro para fora, como um mecanismo gerado pelas próprias engrenagens. Mesmo sem contextualizar os problemas sociais ou sugerir soluções, torna-se um filme necessário ao expor a maneira como a falta de perspectivas e a ausência do poder público formam verdadeiros exércitos de jovens e crianças que manipulam armamentos pesados e matam com uma frieza desconcertante, sempre em prol do comércio de drogas.

Nesse caso, semelhanças com as obras "Rio, 40 Graus"(1955), de Nelson Pereira dos Santos ou "Pixote, a Lei do Mais Fraco" (1980), de Hector Babenco (já falei dele aqui: http://circuitogeral2015.blogspot.com.br/2016/07/filmes-que-eu-vi-especial-pixote-lei-do.html), não são meras coincidências. Entretanto, a temática da exclusão recebe contornos mais pesados no filme de Meirelles. Convertidas em espetáculo, as imagens seduzem e embrutecem o público que, ao final da fita, também não consegue encontrar uma saída para tal dinâmica da sociedade. 

Cidade do mundo


Fruto das experimentações feitas no curta-metragem "Palace II", de Meirelles com Kátia Lund, "Cidade de Deus" fez boa carreira no exterior e obteve grande aceitação pública no Brasil, levando cerca de 3,2 milhões de pessoas aos cinemas. O sucesso do filme contribuiu para a criação, em 2003, de uma série televisiva intitulada "Cidade dos Homens", uma parceria entre a produtora O2 e a Rede Globo. 

Além de trabalhar com o mesmo tema presente nas obras audiovisuais anteriores, o subproduto televisivo contou ainda com a presença dos atores do longa-metragem. O elenco, outro trunfo de "Cidade de Deus", foi composto, em sua maioria, por atores desconhecidos oriundos de escolas de atuação presentes em comunidades carentes. Esses últimos, sem dúvida, encontraram na mídia eletrônica uma maneira de dar seguimento às suas carreiras artísticas. 

Conclusão



Quase lá



"Cidade de Deus" recebeu 4 indicações ao Oscar (Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Montagem e Melhor Fotografia), ganhou 48 prêmios (entre eles: BAFTA de Melhor Edição, 9 prêmios no Festival de Havana, 6 prêmios no Grande Prêmio Cinema Brasil) e mais 21 indicações (entre eles: Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, Independent Spirit Awards de Melhor Filme Estrangeiro). 

Cinco anos depois de sua publicação, um dos romances brasileiros mais importantes da década de 90 chegava aos cinemas para contar, num painel ágil e visceral, como o crime organizado se instalou nas favelas do Rio.

Do livro às telas


Lançado em 1997, Cidade de Deus, de Paulo Lins, foi levado às telas por Fernando Meirelles (Menino Maluquinho 2 e Domésticas, o Filme). Mas Fernando define Cidade de Deus como um "filme de turma" - uma obra que não teria sido a mesma sem a contribuição de toda a equipe, principalmente da co-diretora Katia Lund; do roteirista Bráulio Mantovani; do diretor de fotografia César Charlone; do montador Daniel Rezende e do diretor de arte Tulé Peake. Sem mencionar, conforme já dito, o elenco, formado por centenas de jovens atores, quase todos em seus primeiros papéis no cinema. 

A pré-estréia mundial aconteceu em maio de 2002, no Festival de Cannes, onde o filme foi considerado a grande descoberta do evento: 
"É uma sensação maravilhosa entrar numa sala de projeção para assistir a um filme de que pouco se sabe e perceber que se está diante de uma obra-prima", 
escreveu à época Andrew Pulver, repórter do jornal inglês The Guardian. 

O principal personagem do filme "Cidade de Deus" não é uma pessoa. O verdadeiro protagonista é o lugar. "Cidade de Deus" é uma favela que surgiu nos anos 60, e se tornou um dos lugares mais perigosos do Rio de Janeiro, no começo dos anos 80. Para contar a estória deste lugar, o filme narra a vida de diversos personagens, todos vistos sob o ponto de vista do narrador, Buscapé. 

Este, um menino pobre, negro, muito sensível e bastante amedrontado com a ideia de se tornar um bandido; mas também, inteligente suficientemente para se resignar com trabalhos quase escravos.

Buscapé cresceu num ambiente bastante violento. Apesar de sentir que todas as chances estavam contra ele, descobre que pode ver a vida com outros olhos: os de um artista. "Acidentalmente" - mais uma brilhante alusão sugestiva -, torna-se fotógrafo profissional, o que foi sua libertação.

Buscapé não é o verdadeiro protagonista do filme: não é o único que faz a estória acontecer; não é o único que determina os fatos principais. No entanto, não somente sua vida está ligada com os acontecimentos da estória, mas também, é através da sua perspectiva que entendemos a humanidade existente, em um mundo aparentemente condenado por uma violência infinita.

Gênero: Drama

Duração: 135 min

Ano: 2002

Direção: Fernando Meirelles

Roteiro: Bráulio Mantovani (baseado no livro de Paulo Lins)

Distribuição: Lumière / Miramax Films (filme), Imagem Filmes (dvd)


Elenco completo: Leandro Firmino (Zé Pequeno), Alexandre Rodrigues (Buscapé), Alice Braga (Angélica), Seu Jorge (Mané Galinha), Paulo Lins (Pastor da Igreja), Douglas Silva (Dadinho, criança), Matheus Nachtergaele (Sandro Cenoura), Phelipe Haagensen (Benê), Jonathan Haagensen (Cabeleira), Roberta Rodrigues (Berenice), Jefechander Suplino (Alicate), Darlan Cunha (Filé com Fritas), Renato de Souza (Marreco), Gabriella Moretto (Marina Cintra), Thiago Martins (Lampião), Daniel Zettel (Thiago), Rubens Sabino (Neguinho), Charles Paraventi (Tio Sam), Micael Borges (Membro da Caixa Baixa #5), Karina Falcão (Mulher do Paraíba), Marcelo Mello Jr. (Membro do Bando do Zé Pequeno #21), Gero Camilo (Paraíba), Marcos Junqueira (Otávio), Sabrina Rosa (Namorada do Galinha), Babu Santana (Grande), Eduardo Piranha (Membro do Bando de Cenoura #9), Olívia Araújo (Recepcionista do motel), Mary Sheila (Mulher do Neguinho), Edson Montenegro (Pai do Buscapé), Gustavo Engrácia (Rogério Reis), Eduardo Boggis (Garoto viciado), Arlindo Lopes (Cocota #2), Guti Fraga (Gerente do supermercado) e Christian Duurvoort (Paulista).

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