terça-feira, 23 de agosto de 2016

LAMENTO: O CLAMOR DO AFLITO

Uma das grandes tragédias do cristianismo contemporâneo, que tão insistentemente tem afirmado a prosperidade, a saúde e o sucesso como expressão real e verdadeira da fé e que, consequentemente, nega o sofrimento ou o classifica como maldição e falta de fé, é que não tem havido mais lugar na igreja para o lamento.

É comum relacionar o sofrimento com o pecado e a prosperidade com a integridade numa relação teológica de causa e efeito: Deus pune o pecador e abençoa o justo. A única coisa que nos resta a fazer diante do sofrimento é arrepender-nos e confessar-nos. Esta é a equação que mais facilmente afirmamos diante da dor. Não nego que muito sofrimento tem sua causa no pecado e que muitos justos prosperam. No entanto, sabemos que nem todo sofrimento é resultado de uma vida ímpia como nem toda prosperidade é fruto da integridade e honestidade. Há portanto uma realidade inegável que envolve a dor e o sofrimento, inclusive entre os fiéis filhos e filhas de Deus que não pode ser negada nem minimizada.

Sabemos que muitos sofrem de forma inexplicável e que neste contexto uma oração de arrependimento parece inadequada e sem sentido. Numa situação assim, não podemos negar o sofrimento, muito menos reduzi-lo a frases prontas, comuns entre nós que tentamos diminuí-lo, dizendo: "Isso passa", "A vida é assim mesmo", "Todos passam por isso". Também não precisamos encontrar meios para explicá-lo, nem mesmo alguma forma de resolvê-lo como realidade própria da existência humana.

Diante da dor e do sofrimento - seja ele causado pelo pecado e rebeldia, por uma manifestação do juízo divino ou mesmo sem apresentar nenhuma causa conhecida - os sentimentos de abandono, pesar perplexidade, dúvida, revolta e indignação tomam conta de nossa alma. Como vamos expressar estes sentimentos diante de Deus? A experiência de oração de Israel nos ajuda a articular uma linguagem adequada para o sofrimento, uma linguagem reprimida pelo triunfalismo falso dos púlpitos modernos irresponsáveis. A linguagem do lamento faz parte da gramática da aliança que Deus estabeleceu com seu povo. Uma relação pessoa e íntima requer transparência e verdade.

Grande parte das orações do Velho Testamento são orações de lamento. Lamento pelo pecado, pelo sofrimento de um povo rebelde e obstinado; lamento pela perda de um ente querido, pela opressão e injustiça dos tiranos. Um livro inteiro, o de Lamentações (de Jeremias), é dedicado a este grito de dor de um povo que não entende os mistérios do sofrimento diante da destruição de uma cidade.

Jeremias, Jó, Habacuque e muitos dos Salmos são orações de lamento. Todos estes lamentos buscam uma resposta de Deus. Querem ouvi-lO. Algumas vezes ouvem uma palavra de Deus; muitas vezes não ouvem nada da parte de Deus. Mas, mesmo diante do silêncio divino, a oração de lamento persiste.

Por que? Até quando?


O lamento serve para articular um problema que surge na vida de quem ora. Normalmente aprece na forma de duas perguntas: Por que? Até quando? São perguntas que demonstram que aquilo que não está certo não pode ser aceito. "Por que o ímpio prospera?"; "Até quando o Senhor permitirá que sejamos oprimidos?"; "Por que alguém honesto e temente ao Senhor permanece desempregado por tantos anos?"; "Até quando meu filho permanecerá escravo das drogas?". São muitos "por ques" e "até quando" que ouvimos todos os dias. O lamento serve para reconhecer que Deus é a causa primeira e última de tudo o que acontece, mesmo quando não há explicações. Diante da dor e do sofrimento, Israel nunca voltava-se para outra fonte - Deus era a fonte. Não tratavam o sofrimento como se fosse uma invasão de forças brutais e demoníacas, uma realidade impessoal que nos coloca no meio do caos. O lamento é uma forma de oração que nos ajuda a perceber que, quando sofremos, experimentamos algo intensamente pessoal, a ira e o amor de Deus. Quando lamentamos, nos voltamos para Deus, reconhecemos que nada existe, acontece ou se move que não faça parte do seu propósito redentor. A partir do momento em que o lamento é eliminado da oração, o sofrimento torna-se impessoal.

O Evangelho que coloca a cruz no centro de sua mensagem, também aceita a cruz do discipulado como parte de sua rotina, que inclui o sofrimento. No entanto, as dificuldades e sofrimentos que enfrentamos não são problemas para os quais o Evangelho provê alguma forma de escape, mas parte da realidade de que a experiência cristã precisa ser compartilhada uns com os outros a fim de dar e receber apoio, conforto e esperança. É no sofrimento que precisamos de coragem tanto para compartilhar como para ouvir aquilo que os outros passam. Precisamos de alguém que nos dê a honra de prestar atenção como pessoas e encarar nossa situação como ela é. O lamento nos protege dos relacionamentos superficiais, do conforto padronizado e do cristianismo plástico, irreal e desumano.

A utopia ilusória do triunfalismo


Aqueles que afirmam que um cristão não sofre, não apenas mentem como roubam a dignidade de quem sofre, e apontam para um mundo irreal onde a ilusão nos afasta do lamento e do contato com aquilo que é verdadeiro: nossa dor. O sofrimento não é uma tragédia que deve ser evitada, como se isto possível, mas uma experiência com o Deus soberano, o Senhor da vida, cujos caminhos são diferentes dos nossos caminhos e os seus pensamentos permanecem mais altos que os nossos.

O lamento não é um fim, é uma forma como oramos, como entramos em diálogo com Deus. A medida em que perguntamos: "Por que?"; "Até quando?", permanecemos com os olhos voltados para Deus esperando que ele mesmo nos responda, crendo que só ele tem a última palavra e que só a sua Palavra pode nos salvar e redimir. O lamento nos coloca em contato com nossa humanidade caída que precisa de perdão. Nos coloca em contato com nossa dor e a dor do outro e cria entre nós uma comunidade mais verdadeira e uma comunhão mais profunda e real.

Conclusão


Precisamos criar mais espaços para o lamento. 

Infelizmente, em nossas igrejas, há mais espaço para os amigos de Jó do que para o próprio Jó. Temos receio dos riscos lamento, das perguntas inoportunas, da possibilidade da decepção espiritual. No entanto, a única forma de dar sentido ao conturbado mundo que vivemos, é manter Deus o coração dele.
"Portanto, tendo este ministério pela misericórdia que nos foi outorgada, não desanimamos. (...) 
Temos, porém, esse tesouro em vasos de barro, para demonstrar que este poder que a tudo excede provém de Deus e não de nós mesmos. Sofremos pressões de todos os lados, contudo, não estamos arrasados; ficamos perplexos com os acontecimentos, mas não perdemos a esperança; somos perseguidos, mas jamais desamparados; abatidos, mas não destruídos; trazendo sempre no corpo o morrer de Jesus, para que a vida de Jesus, da mesma forma, seja revelada em nosso corpo. Pois nós, que estamos vivos, somos cotidianamente entregues à morte por amor a Jesus, para que a sua vida também se manifeste em nosso corpo mortal. 
(...) Portanto, não desanimamos! Ainda que o nosso exterior esteja se desgastando, o nosso interior está em plena renovação dia após dia. Pois as nossas aflições leves e passageiras estão produzindo para nós uma glória incomparável, de valor eterno. Sendo assim, fixamos nossos olhos, não naquilo que se pode enxergar, mas nos elementos que não são vistos; pois os visíveis são temporais, ao passo que os que não se vêem são eternos." - 2 Coríntios 4:1,7-11,16-18 (Versão King James Atualizada)

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