sexta-feira, 8 de julho de 2016

ACONTECIMENTOS - A MORTE DE TANCREDO NEVES: FATALIDADE OU CONSPIRAÇÃO?

Depois de 21 anos de ditadura militar, o Brasil vivia a expectativa de ter o primeiro presidente civil. Tancredo Neves (1910-1985) fora eleito pelo Congresso Nacional e deveria tomar posse no cargo no dia 15 de março de 1985. Mas, na véspera, chegou a notícia inesperada: ele tinha sido internado num hospital de Brasília, o que desatou uma onda de boatos sobre o motivo da internação. Tiro no peito? Envenenamento? As diferentes versões vinham de todas as partes, sem que ninguém pudesse dizer ao certo onde surgiram. O grande temor era de que o suposto atentado tivesse o objetivo de interromper o processo de redemocratização do país.

A demora dos canais oficiais de comunicação em informar o verdadeiro estado de saúde do paciente reforçou os rumores. No dia 21 de abril, sua morte foi finalmente anunciada. A explicação oficial aponta que Tancredo foi vítima de um tumor no intestino, inicialmente diagnosticado como diverticulite. 

O choque da população com a notícia foi grande porque a campanha presidencial tinha feito um investimento sem precedentes na imagem do político, chegando a afirmar que sua saúde era perfeita, apesar dos 75 anos. Depois de sua vitória, a revista Manchete chegou a publicar uma conversa com o médico de Tancredo: sua saúde se devia à ingestão diária de cápsulas de magnésio. A informação fortalecia a confiança na sua saúde e chegou a aumentar o consumo daquele mineral.

O espetáculo global


É impossível dar conta de todos os significados produzidos e atribuídos à figura do presidente Tancredo Neves quando da sua morte, em 21 de abril de 1985, assim como ao grandioso funeral que se seguiu ao seu falecimento. Não obstante, tal episódio é certamente passível de uma análise que, limitada como qualquer outra produção historiográfica, procure dar conta da construção simbólica que se conformou naquele momento. 

Para além de um "significante vazio", talvez se tenha produzido naquela conjuntura uma forte interpretação do que é o Brasil, daquilo que supostamente caracterizaria o povo brasileiro, enfim, uma certa ideia de identidade nacional: o Jornal Nacional produzido pela Rede Globo de Televisão e transmitido na noite do dia correspondente à morte de Tancredo Neves. 

Embora seja um instrumento específico de análise, vale destacar que determinadas ideias que perpassaram o programa foram recorrentes nos meios de comunicação de um modo geral naquela conjuntura, dando conta de um certo clima de "redescoberta do nacional" que permeava setores sociais mais amplos do que aquilo que poderia representar um telejornal de uma emissora de televisão específica.

Exibido em 21 de abril de 1985, o programa Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão recebeu uma edição especial, totalmente voltada para a doença e a morte de Tancredo Neves. Intitulado "O martírio do Dr. Tancredo", o programa procurava dar conta daquela forte experiência vivida pela sociedade brasileira, que começou cerca de 39 dias antes, quando o presidente eleito pelo Colégio Eleitoral foi internado no Hospital de Base de Brasília, depois de ser acometido por graves dores na região do abdômen na véspera da data prevista para a sua posse. 

Para além do papel de "mártir" atribuído a Tancredo Neves, expresso no próprio título do programa, o telejornal se iniciava com a imagem de uma cruz, projetada sobre o fundo de um céu azul, na parte superior, e uma faixa verde e amarela, na inferior. Acompanhando a imagem, a veiculação de cânticos religiosos, que perdurariam ainda por alguns segundos à aparição do apresentador Sérgio Chapelin (âncora do telejornal à época dos fatos). 

A acentuação do caráter religioso atribuído ao episódio e à própria figura do presidente morto marcou todo o programa daquela noite, conforme aprofundaremos em outros momentos deste texto. À primeira vista, de fato, impressiona a forte carga simbólica e emotiva mobilizada durante todo o telejornal. À perspectiva de cristalização de uma imagem do personagem corresponderia, por outro, a elaboração de uma certa percepção do que seria a nação ou o povo brasileiro.

Mesmo após a morte de Tancredo, os boatos continuaram. Há, inclusive, quem acredite que ele morreu antes de 21 de abril, e que essa data teria sido escolhida para o anúncio por ser Dia de Tiradentes. Assim se poderia reforçar a associação entre a sua morte e a do inconfidente.

O salvador da pátria


Numa primeira parte de "O martírio do Dr. Tancredo" foi exibida uma retrospectiva dos fatos considerados mais importantes dentro do período que se estendeu da noite de 14 de março, véspera da data prevista para a festa da posse, até a morte de Tancredo Neves, no Instituto do Coração do Hospital das Clínicas de São Paulo. 

Na segunda parte, vários pronunciamentos de autoridades, depoimentos e homenagens à figura de Tancredo seriam exibidos. Em ambos, salta aos olhos a exaltação e a heroicização da sua figura. Não somente supostos traços positivos da personalidade do presidente eram recorrentemente destacados, como sua trajetória política era projetada de forma teleológica, sob a ótica da predestinação do salvador da nação brasileira.

Bastidores


No dia anterior à posse de Tancredo, na missa celebrada na catedral de Brasília, acabou a luz. Algumas pessoas alegaram terem ouvido um tiro (ou algo parecido). Dali Tancredo teria sido encaminhado para o hospital.

Histórias são contadas a esse respeito, e uma delas afirma que a repórter Gloria Maria, presenciou a cena. Logo em seguida a jornalista acabou se tornando correspondente internacional no Marrocos, o que é visto pelos conspiracionistas como uma forma usada pela Globo de afastar a jornalista das discussões a respeito do caso.


Assassinato, conspiração militar e bruxaria

Segundo os conspiracionistas, nesta foto tirada para provar que Tancredo estava vivo, na verdade o presidente já estava morto e os médicos estão o segurando para não cair
O clima na família ainda é de perplexidade. Ninguém consegue entender com clareza o que de fato levou à morte de Tancredo. Além de evidentes erros médicos cometidos durante os 38 dias de agonia do presidente eleito, persistem as mais variadas versões: desde ações bem terrenas – atentados por envenenamento ou inoculação de bactérias – até as do mundo sobrenatural – trabalhos espirituais, bruxarias e mandingas.

A família Neves está intrigada com casos como o do garçom João Rosa, escolhido para ser o mordomo do presidente eleito. Ele também teve uma morte estranha, um dia depois do falecimento de Tancredo. Rosa tinha 52 anos e morreu oficialmente em consequência de diverticulite, primeiro diagnóstico para a doença do presidente. O garçom, que era funcionário do Palácio do Planalto, chegou a trabalhar alguns dias na Granja do Riacho Fundo, residência provisória do novo presidente e onde Tancredo fazia as refeições enquanto definia o Ministério da Nova República. 

Localizada pela revista ISTOÉ, a viúva do mordomo, Neusa Rosa, funcionária pública aposentada, revelou sua desconfiança de que o marido pode ter sido envenenado. No Domingo de Páscoa de 1985, enquanto no Instituto do Coração, em São Paulo, Tancredo lutava contra duas poderosas bactérias, em Brasília João Rosa era internado às pressas com violenta hemorragia intestinal. Ficou 16 dias no hospital e, como Tancredo, passou por sete cirurgias. 

Uma semana depois da morte do marido, dona Neusa foi a Uberlândia, sua cidade natal, e resolveu visitar o médium espírita Chico Xavier. Dele a viúva ouviu uma revelação que aumentou sua desconfiança: "Que pena. O seu João foi embora tão cedo. Envenenaram ele, como fizeram com o doutor Tancredo." Os médicos que atenderam Tancredo descartam taxativamente a hipótese de envenenamento. Essa suspeita cresceu quando se descobriu que havia conspiração entre os militares. 

Ainda segundo a revista, a resistência desses militares golpistas em entregar o poder a Tancredo ficou evidenciada antes mesmo do início da campanha. No dia 10 de agosto de 1984, véspera da Convenção do PDS que escolheria Paulo Maluf como candidato ao Planalto, militares foram presos em Brasília quando colavam cartazes pretensamente provocativos. Os símbolos do então ilegal Partido Comunista Brasileiro emolduravam a frase "Chegaremos lá". 

Os militares, na verdade, estavam a serviço do general Íris Lustosa, chefe do Centro de Informações do Exército. As informações sobre uma conspiração militar não paravam de chegar ao comando da candidatura Tancredo. Na mesma ocasião em que Maluf estaria planejando o golpe, os líderes da Aliança Democrática se reuniram em Campo Grande para definir um plano de resistência e fuga. 

Em caso de uma ofensiva militar, Tancredo seria levado ao Paraná, de onde resistiria com o apoio dos três governadores do Sul – José Richa (PR), Espiridião Amin (SC) e Jair Soares (RS) – e de suas polícias militares. 

As negociações com os militares convenceram Tancredo de que não havia mais riscos de um golpe. A falta de apoio dos quartéis levou alguns generais da linha-dura a marcharem em outra direção nada convencional. O general Íris Lustosa foi um deles. A partir do final de novembro, Lustosa passou a ter encontros frequentes no Rio de Janeiro e Brasília com o "bruxo" Lourival de Freitas, um personagem estranho que dava consultas a artistas como Tom Jobim, Lucélia Santos e Chico Buarque de Hollanda e tinha misteriosas reuniões com os generais Coelho Netto e Lustosa. 

Segundo pessoas que conviveram com o "bruxo", ele teria participado de um trabalho espiritual para evitar que Tancredo chegasse ao Palácio do Planalto."O trabalho está feito", comemorou o "bruxo" num telefonema que teve testemunhas. A explicação sobrenatural para a tragédia de Tancredo não parece convincente, mas há quem acredite nela. 

Na tarde de 14 de dezembro de 1984, o próprio Tancredo recebeu a vidente Janete Rico Antunes Ribeiro. "Existem correntes espirituais interessadas na sua morte", anunciou Janete, que, em seguida, descreveu o que aconteceria com Tancredo nos próximos meses. "Foi impressionante. Pode ter sido uma grande coincidência, mas ela previu tudo o que depois aconteceu com o dr. Tancredo", recorda Antônia Gonçalves Araújo, a poderosa secretária particular do presidente eleito.

Novas investigações


O historiador e pesquisador médico Luis Mir, autor da obra O paciente, que trata de um estudo único do caso, que durou 25 anos, respaldado em entrevistas com 42 médicos envolvidos, prontuários, diagnósticos, exames, cirurgias, procedimentos, rotinas e condutas no pré, intra, e pós-operatórios, e a evolução até o óbito de Tancredo, disse ano passado, quando foi o aniversário de 30 anos da morte de Tancredo, que "ainda há lacunas em aberto: ninguém foi responsabilizado e paira o silêncio em torno do caso. Vamos requerer a reabertura ao Conselho Federal de Medicina e aos conselhos regionais de São Paulo e do Distrito Federal. A sociedade tem o direito de conhecer os processos éticos e disciplinares das sindicâncias anunciadas à época". Não sei se deu em alguma coisa ou se foi mais um capítulo dessa história toda.

Conclusão


Espetáculos televisivos, conspirações militares e forças ocultas à parte, o fato é que Tancredo de Almeida Neves, o presidente que foi sem nunca ter sido se transformou (ou transformado?) em um mártir. Até mesmo as "incertezas" que rondam sua morte contribuíram para fortalecer sua história.

O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade tem um verso que diz: Do lado esquerdo carrego meus mortos, por isso caminho um pouco de banda. A morte de Tancredo Neves, sem conseguir assumir o cargo de presidente, elevou-o à condição de mito, equiparando-o a Tiradentes: se Tiradentes foi o mártir da Inconfidência, certamente Tancredo foi o mártir da Nova República. Tancredo passou a ocupar o lado esquerdo do peito dos mineiros, como diriam juntos Milton Nascimento e Drummond. 

[Fontes: Arquivos Jornal Diário da Tarde, 09 de abril de 1986. Jornal Estado de Minas, 14 de janeiro de 2005, 19 de abril de 2015. Jornal Folha de S. Paulo, 22 de abril de 1985. Revista Afinal, 19 de março de 1985. Revista Istoé, 19 de março de 1985. Revista Veja, 20 de março de 1985.]

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